No mesmo post que referi há pouco, o Aristarco lança a seguinte questão:
Os ideogramas chineses foram um entrave ao desenvolvimento da China?
O primeiro comentário ao post menciona o suposto carácter predominantemente ideográfico da escrita chinesa, que permitiria comunicar ideias directamente sem referenciar os sons habitualmente utilizados para as representar:
A segunda pergunta é muito interessante. Estruturar uma linguagem onde as palavras são simbolos que exprimem uma ideia, e não um som, é estruturar a mente de uma forma completamente diferente. O que tem implicações práticas na forma como se olha, se vê e se sente o Mundo.
Apesar de bem difundido mesmo em meios cultos, o mito de que a escrita chinesa é ideográfica foi sobejamente desmontado por John Defrancis, no seu famoso livro The Chinese Language: Fact and Fantasy (1986).
A verdade é que mais de dois terços dos caracteres chineses são utilizados apenas pelo seu valor fonético. Visto por este prisma, o sistema de escrita chinês constitui um gigantesco silabário, em que a maioria dos símbolos representam uma única sílaba.
Como o repertório silábico do Mandarim se limita a menos de mil e quinhentas sílabas, o sistema de escrita chinês poderia ser relativamente adequado para a representação fonética do Mandarim, não fora o facto de muitas sílabas poderem ser representadas por múltiplos caracteres, o que em parte explica o grande número de caracteres em uso corrente (>5000).
A questão da vantagem dos caracteres chineses para o desenvolvimento da China é interessante. Penso que enquanto o domínio da escrita esteve reservado às elites, pode ter constituído uma vantagem, já que os leitores fluentes parecem ser capazes de utilizar o conteúdo semântico de alguns caracteres para desambiguar morfemas homófonos e assim acelerar o processo de leitura (cf. Geoffrey Sampson: Writing Systems: A Linguistic Introduction). No entanto é provável que essa putativa eficiência tenha sido mais do que aniquilada pela lentidão do processo de escrita (por oposição ao processo de leitura).
O problema da escrita chinesa é que o processo de aquisição da fluência é longo e ineficiente. Numa era em que a educação se deseja universal, e em que vários países com escritas fonémicas ou morfofonémicas são capazes de atingir taxas de literacia perto dos 100%, parece-me que a escrita chinesa é uma relíquia arqueológica destinada aos museus, e não tenho grandes dúvidas de que constitui um entrave à redução das desigualdades gritantes da sociedade chinesa moderna.
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