O debate sobre o novo estatuto da autonomia catalã, em que esta se redefine como "nação" e não apenas como "nacionalidade", está a provocar um aceso debate em Espanha. O "El Pais" de Domingo passado traz uma excelente coluna de opinião assinada por Josep Ramoneda que deita água na fervura sobre este assunto:
Del mismo modo que el sueño último de los nacionalistas catalanes es el Estado propio, los nacionalistas españoles entienden cualquier complejidad nacional como una amenaza inminente de ruptura de la nación y del Estado. Es una concepción clásica, que ha articulado la política durante un par de siglos, que se basa en la correlación entre nación y Estado, pero que se está haciendo obsoleta día a día.
A maioria das pessoas é capaz de gerir múltiplas pertenças, quer seja a uma classe sócio-profissional, a uma comunidade local, a uma nação, a um estado, ou ao mundo, sem que tal acarrete a desagregação das distinções. O mundo simples acabou, se é que alguma vez chegou a existir em mais do que um punhado de locais e períodos. O projecto europeu é a expressão mais visível de como está avançado este processo de desacoplamento entre "estado" e "nação":
En sociedades que, sometidas a los flujos de la globalización, cada vez son más complejas, la nación homogénea ya no existirá nunca más, salvo que los portadores de las esencias se impongan a sangre y fuego, como en Serbia o en Croacia. Y el poder tendrá que encontrar otras vías de legitimación porque la separación de nación, estado, lengua y cultura es una realidad inevitable y, a mi entender, sumamente deseable. Y pensado así, a nadie debe impresionar que España pueda ser una nación de naciones (inscritas o yuxtapuestas), o que Europa se configure como una forma de Estado -distinta, sin duda, de los Estados tradicionales- que no se sustenta en una nación sino en una suma de naciones.
Este desacoplamento é desejável para todos aqueles que acreditam que a maioria dos valores da civilização moderna são "transplantáveis", i.e. não são na sua essência intrínsecos às culturas na qual se deu a sua génese. Isto permite pôr de parte os objectivos supremacistas e ver a colaboração entre estados e fortificação dos valores partilhados como a missão das sociedades modernas. No entanto, para ser saudável e sustentável, este desacoplamento tem de ser acompanhado de migrações de competências em direcções inversas: Por um lado, o poder local delega em instâncias superiores alguns dos seus poderes, permitindo através da coordenação de esforços tornar o todo maior do que a soma das partes. Por outro lado, o poder local deve ser respeitado e mesmo fortalecido nas esferas que lhe estão mais próximas, respeitando a sua identidade e autonomia e usando sempre o princípio da subsidiariedade.
A Cataluña representa de certa forma o protótipo da nação europeia moderna: uma nação que mesmo privada forçosamente de muitos dos seus poderes foi capaz de afirmar a sua autonomia e identidade no interior de uma entidade política mais vasta, e até prosperar e tirar partido das novas oportunidades abertas por essa pertença múltipla. No final das contas, e enquanto a Suiça não entra, talvez a Espanha vista como "Nação de Nações" seja o mais europeu de todos os estados membros, apesar de todos os seus conflictos internos.
A União Europeia é ou quer ser um novo tipo de estado: um meta-estado composto por múltiplos estados e múltiplas nações (inscritas ou juxtapostas, como diz Ramonet) que mantêm um elevado grau de autonomia; um meta-estado que ao contrário de outros super-estados do passado não sufoca as múltiplas identidades que nele existem, antes prosperando na sua diversidade.
Embora alguns sonhem ainda com um super-estado europeu equiparável no seu funcionamento aos EUA ou à China, penso que o alargamento continuado da União Europeia só é possível graças ao reconhecimento implícito ou explícito de que esse super-estado está condenado ao fracasso. A UE, se perdurar, terá de continuar a ser algo de diferente, algo de novo: um espaço civilizacional e económico, de soberania partilhada e não roubada, de valores construídos e não impostos, de comércio mutuamente enriquecedor e não predador. Um espaço potencialmente universal.
Neste enquadramento, a notícia de que a Áustria não conseguiu impedir o início do processo de adesão da Turquia à União Europeia é para mim uma excelente notícia. Quem sabe, talvez um dia vejamos um Mare Nostrum ressuscitado sob a forma de uma União Europeia que se estenda desde o Magrebe até Israel. Ou talvez a União se desintegre sob o peso das suas contradições internas, quem sabe. A tarefa não se adivinha fácil. Mas "Tudo vale a pena se a alma não é pequena".
Recent Comments