Li ontem o terceiro volume da série de banda desenhada "A Pior Banda do Mundo", uma BD portuguesa da autoria de José Carlos Fernandes, publicada em Portugal e Espanha pela Devir. Embora seja raro entusiasmar-me com a BD nacional, há que reconhecer que qualidade tem vindo a subir marcadamente nos últimos anos, quer em termos de desenho quer em termos de argumento. É nesta última categoria que "A Pior Banda do Mundo" brilha, estando seguramente ao nível do que de melhor se faz mundialmente.
Os três volumes até agora publicados giram todos em torno de uma cidade algures na Europa Central, povoada por personagens e ruas cujos nomes têm ressonâncias germânicas, eslavas e italianas, que ajudam a criar um universo com um vago sabor a regime totalitário entretanto convertido às delícias ocas da sociedade de consumo e do marketing. Os livros consistem em colecções de episódios que raramente ocupam mais do que duas páginas, e cujo tema é quase invariavelmente mostrar o carácter absurdo desta sociedade e dos seus habitantes, que parecem não se aperceber do ridículo cinzento e inútil das suas vidas.
O desenho contribui para sedimentar este universo, optando por uma estética "feia": Sem serem grotescos, todos os personagens são feios, tristes e banais, sendo sempre desenhados a preto e branco. Já os cenários de fundo são todos desenhados em tons de sépia, o que não contribui exactamente para alegrar o tom desta banda desenhada.
No entanto, apesar de os desenhos contribuirem de forma decisiva para o sucesso desta obra, o seu trunfo é sem dúvida a qualidade da escrita de José Carlos Fernandes, com diálogos e descrições halucinantes e por vezes hilariantes. Alguns exemplos:
- Vol. 3 - 6. As Estatísticas Vitais:
- Ocupação?
- Asmático.
- Desculpe, mas isso não é uma ocupação.
- Bem, não o será para si que tem a sorte de ser saudável. Para mim, que sofro de asma desde os 2 anos, respirar é uma ocupação a tempo inteiro.
- Vol. 3 - 10. Os Medos Inconfessáveis:
O maior receio de Elias Goetz é de um dia sair para a rua sem chapéu.
- Tomo todas as precauções. Mas, por vezes, estou a pôr o chapéu, estou perfeitamente consciente de estar a pôr o chapéu e penso "é uma ilusão, é uma parte de mim mesmo a enganar-me, quando acordar estou na rua de cabeça descoberta!"
- Vol. 3 - 17. A Escola Superior de Falácia e Diletância:
(...) Todos os cursos compartilham um conjunto de cadeiras fundamentais - dactilografia criativa, noções básicas de entropia, arquivismo aleatório, informática oitocentista, entraves administrativos I e II, inépcia aplicada, taquigrafia críptica, teoria do caos... Eu próprio me ocupo das cadeiras de planeamento a posteriori I e II (em que a matéria do 1º semestre pressupõe o domínio dos conceitos que só são explanados no 2º). (...)
- Vol. 3 - 24. O Bloqueio Metafórico:
- Qual é a velocidade de processamento?
- Um soneto em oito minutos, se o tema fôr clássico, como "Tormentos do Amor Não Correspondido", "Glorificação da Amada", "Solidão do Amante Abandonado" ou "Transportes Amorosos". Se o tema fôr pouco ortodoxo, digamos "Relações Comerciais Sino-Germânicas", "Gravidez Histérica", ou "Alegrias da Soldadura com Arco Voltaico", o tempo de processamento poderá atingir 1 ou 2 horas...
A ler.
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