Este nó górdio e o embaraço dos Embaixadores portugueses na Europa
A Europa assiste, por certo muito curiosa, ao desenrolar da inédita crise portuguesa. Os nossos Embaixadores estão a ser literalmente bombardeados nas diversas capitais por essa mesma curiosidade sobre uma crise que, tal como no gó górdio, quanto mais se puxa mais aperta.
De um sítio, dão-nos conta da estupefacção causada pelo facto do Primeiro Ministro José Manuel não ter procedido às razoáveis consultas institucionais internas, antes de consumar em definitivo a sua opção pessoal de aceitar Bruxelas. Considera-se isso como uma falha grave. Na verdade, nem o Presidente da República, nem a Ministra de Estado e N.º Dois do Governo, nem a MNE foram previamente confrontados com os cenários onde necessariamente teriam de ser protagonistas [...].
A decisão está tomada: Pedro Santana Lopes será o próximo Primeiro Ministro de Portugal. Se a prioridade era assegurar a estabilidade política a curto prazo, trata-se de uma má decisão, como julgo que os eventos dos próximos meses irão demonstrar.
Este novo governo nasce numa posição de extrema fragilidade política, e como diz o provérbio, “o que nasce torto, tarde ou nunca se endireita”. A falta de credibilidade e de legitimidade política de Santana Lopes e de Paulo Portas é evidenciada até pela postura defensiva assumida por estes dirigentes e pelos seus apoiantes. Não haverá período de graça ou benefício da dúvida para este governo.
O que levou Jorge Sampaio a tomar esta decisão, em aparente conflito com a sua familía política e com a sua base de apoio eleitoral? Em primeiro lugar, Sampaio privilegia uma interpretação legalista e formal das suas funções, encarando como prioridade a salvaguarda das instituições, em particular do mito consagrado na lei de que são os partidos que são eleitos, e não as lideranças. Em segundo lugar, penso que Sampaio considerou que o PS liderado por Ferro Rodrigues não dava garantias de conseguir governar o país de forma estável, havendo até a possibilidade de nem sequer conseguir ganhar as eleições a um PPD-PP galvanizado pela força da sua “vitimização”.
Ao que tudo indica, Ferro Rodrigues interpretou esta decisão como uma falta de confiança pessoal de Jorge Sampaio na sua capacidade de liderança do PS e do país, e parece-me que tomou a decisão correcta ao demitir-se. Fica aqui a minha homenagem sentida a um homem íntegro, corajoso e combatente que foi líder da oposição em circunstâncias extremamente duras, e que não se deixou abater perante dificuldades que teriam liquidado tantos outros.
Quem sai mais fortalecido desta crise é o PS, que sob a liderança agora provável de José Sócrates ou de António Vitorino irá constituir um adversário poderoso para o PPD-PP nas próximas eleições, que se adivinham antecipadas. Quem sai enfraquecido é a coligação, que cometeu o erro talvez fatal de mostrar ter receio de ir a votos, o PPD/PSD, cujas guerras intestinas serão difíceis de controlar, e Pedro Santana Lopes, que ascende à liderança sem a ter conquistado, o que com frequência se revela um presente envenenado.
Se o resultado final desta crise for pôr Santana Lopes fora de jogo antes de ter tempo para fazer danos significativos ao país, talvez tudo tenha servido para alguma coisa. Até lá, parece-me que Jorge Sampaio tomou uma decisão errada. A sua formação jurídica talvez o tenha levado a esquecer-se de que o seu cargo é antes de mais político, e como tal a sua actuação deve reflectir na medida do possível os sentimentos daqueles que o elegeram. Se houve ocasião nos seus dois mandatos em que se impunha que respeitasse a vontade dos que o elegeram era esta. Em lugar disso, optou por aquilo que Manuel Villaverde Cabral tão aptamente intitulou de isenção perversa. Jorge Sampaio pecou igualmente por ter privilegiado o que entendeu ser o interesse a médio prazo do PS, quando não tinha competência, distanciamento ou idoneidade para o fazer. Só os portugueses tinham legitimidade para fazer essa escolha, boa ou má. Sampaio retirou ao povo português o seu legítimo direito de se pronunciar sobre o rumo que o país deve tomar num momento em que a fragilidade da sua liderança é bem patente.
O erro mais fundamental de Sampaio foi no entanto o de ter dado cobertura à fuga de Durão Barroso. É sintomático que o nome do homem que levianamente despoletou esta crise poucas vezes tenha sido mencionado após a decisão do Presidente. Jorge Sampaio deixou que o seu nome ficasse para sempre associado às consequências desta fuga, e penso que o seu legado histórico se arrisca a ficar gravemente danificado por esta decisão.
A manifestação de Domingo em frente ao Palácio de Belém foi bastante participada. Alguns milhares de pessoas protestaram veementemente durante mais de duas horas em frente da residência do Presidente da República contra a transferência administrativa do poder executivo sem uma consulta popular. Embora tenha visto vários bloquistas, membros da ATTAC e membros e ex-membros da JCP, o público pareceu-me bastante variado. Não vi um único símbolo partidário nem ouvi nenhum slogan conotado com um partido específico. Vi apenas um repúdio generalizado perante esta fuga irresponsável que entrega o país às feras.
Estavam presentes várias personalidades conhecidas, como Helena Roseta, Fernando Rosas, Miguel Portas, Diana Andringa, Isabel do Carmo, e - pasme-se - o José Manuel Fernandes, director do Público e apoiante de primeira água do governo de Durão Barroso e da guerra do Iraque. A presença de José Manuel Fernandes na manifestação é para mim sintomática dos poucos apoios que Santana Lopes recolhe mesmo naquela que deveria ser a sua base de apoio natural. José António Lima e Henrique Monteiro, respectivamente Director-adjunto e Subdirector do semanário Expresso, manifestaram na edição de 2004-06-26 grandes reservas relativamente ao nome de Santana Lopes. Cronistas como Vasco Pulido Valente, Pacheco Pereira e Alfredo Barroso criticaram duramente a partida de Durão Barroso para Bruxelas, e Freitas do Amaral e Francisco van Zeller também atacaram a decisão. No PSD, Manuela Ferreira Leite e Marques Mendes já aproveitaram para se demarcar de Santana Lopes.
Restam figuras como José António Saraiva e Luís Delgado para apoiar esta transição mirabolante. Quanto ao primeiro, o que é que se há de esperar do homem que escreve em média uma frase e meia ideia por parágrafo? Quanto a Luís Delgado, já há muito que este escolheu afundar-se no atoleiro da bajulação acrítica e acéfala do poder instituído.
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